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Movimento, ato e potência

A metafísica é o ramo do saber que investiga o que existe no seu aspecto mais elevado, analisando suas causas primeiras. Alguns conceitos são próprios do estudo da metafísica: ente, acidente e substância, todo e partes, nominalismo e realismo, além de muitos outros. Neste breve artigo, falaremos sobre dois destes conceitos caros ao filósofo interessado em metafísica: ato e potência. Essas duas noções, correlatas e complementares, são um ponto central da filosofia clássica. Há autores que inclusive defendem ser a distinção entre ato e potência o fundamento do pensamento de Tomás de Aquino, enquanto outros a consideram a doutrina mais original de Aristóteles e uma das que teve mais êxito na história da filosofia ocidental.

Aristóteles, na Física, argumenta que “movimento é o ato do ente em potência enquanto tal”; ainda segundo o filósofo, o ato é “a coisa que é em si mesma nesse momento” e potência a “capacidade de vir a ser aquela coisa”. Que significam tais afirmações?

Ato e potência

É mais fácil pensar nesses conceitos com um exemplo: a água em um copo, naturalmente, possui uma temperatura atual; potencialmente, contudo, o líquido está em uma temperatura mais alta ou mais baixa, já que pode cair — chegando mesmo a zero graus — ou subir, atingindo os cem graus que a fariam evaporar. Sabe-se que a água congela a zero graus e torna-se vapor aos cem: esta é uma potencialidade própria da água. A potência é, portanto, onde é possível chegar, e o ato é a manifestação atual do ser.

O que significa estar em ato

Para nos aprofundarmos na noção de ato, podemos  partir da noção proposta por Aristóteles: o ato é o existir do ente, da coisa, na realidade, e não de maneira quando dizemos que está em potência. Estão em potência a estátua em relação ao bloco de mármore, o jogador que não entrou no campo, a criança cujos dentes não nasceram… 

O ato é a realidade que está presente inteira diante de nós, desenvolvida, “atualizada”. Ela não é mera possibilidade, mas algo realizado. Em parte, essas explicações são circulares, mas permitem que formulemos a ideia de ato e a apliquemos a situações concretas. Empregamos a noção “ato” analogicamente, não exatamente de forma igual em todas as circunstâncias. Alguns entes estão na relação do movimento para com a potência, enquanto outros estão na relação da substância com certa matéria. O movimento surge em um ente em potência, assim como a substância se dá em uma matéria (tratando-se de uma substância física, evidentemente). Há um paralelismo, ainda que não uma identificação absoluta; é a marca da analogia.  

Potência ativa e potência passiva

A potência ativa não está naquele que será mudado, mas em outro, o agente do movimento. Por exemplo, a capacidade de escrever não está no que é escrito – a página, ou a parede, ou uma tela etc. –, mas no escritor. Pode acontecer que o escritor desenhe letras em sua pele. Nesse caso, ele recebe as letras em seu corpo não por ter a capacidade de escrevê-las, mas porque sua pele pode ser pintada. O princípio do movimento está nele, mas enquanto outro. O escritor não recebe as letras em sua pele porque é capaz de escrevê-las, mas porque a pele pode ser pintada. Ao mesmo tempo, a potência da pele de ser pintada é um exemplo de potência passiva; ela foi mudada por outro enquanto outro, não por si mesma. Se a pele é do escritor, isso não faz diferença; ela pode ser pintada por um terceiro do mesmo modo. 

Em certo sentido, a potência para fazer – ativa – ou para padecer – passiva – é a mesma, mas em sujeitos diferentes. Melhor ainda: são mutuamente dependentes. Apenas pode ser alterado o que tem capacidade para isso; a potência ativa exige um objeto adequado para ser exercida. A potência passiva e ativa são, portanto, duas faces complementares da realidade do movimento. A água tem a potência de ser aquecida pelo fogo, enquanto o fogo tem a capacidade de esquentá-la. Portanto, o agente e o paciente da mudança são entes com potências, seja porque podem ser modificados por outro, seja porque podem modificar outro. 

Por outro lado, é evidente que, de outro ponto de vista, são potências diferentes. Uma está no paciente, que necessita ter certo princípio ou característica para sofrer a ação. Não é possível escrever no gás carbônico ou na água, ao menos com tinta comum, porque ambos não apresentam a potência passiva para serem modificados por uma inscrição, o que é distinto do que se dá em uma folha de papel ou em uma tela. A potência ativa está no agente, como a capacidade de escrever está no escritor, ou o calor está no fogo. Então, uma é a potência do paciente, outra a do agente, ainda que se pressuponham e existam simultaneamente, para que se dê o movimento ou mudança.  

Movimento

O movimento ocorre quando algo que tem a possibilidade de ser alguma coisa está indo na direção de tornar-se esta coisa. Retomando o exemplo: caso se tente aquecer a água da temperatura ambiente para os sessenta graus, sua alteração de uma temperatura para outra é o movimento. Seria, deste modo, o ato do ente em potência enquanto potência: sessenta graus é o ponto para o qual deseja-se que a água se atualize e ela está em ação nesta direção, mas ainda não chegou no ato pleno. Quando chega no ato pleno, cessa o movimento. 

O método filosófico e a explicação do movimento

Note que tudo é assim: em todas as coisas há certa instabilidade. As coisas que são também estão inclinadas a ser outra coisa: o homem é o que é, mas seus cabelos caem enquanto outros nascem, seu peso aumenta ou diminui… a filosofia busca explicar a natureza destes movimentos por meio da identificação de suas causas primeiras e finalidades últimas. 

A biologia, por exemplo, ao descrever a vida, discorre sobre o cérebro, a atividade cerebral, a respiração e o funcionamento dos órgãos. É possível dar descrições físico-químicas para falar sobre a atividade cerebral; contudo, investigar de onde vem a ideia de alma e do princípio que faz com que haja a vida e o movimento são questões do âmbito da filosofia. O filósofo se preocupa com o que é próprio do ente.

É importante notar que mesmo a ciência enquanto descrição pressupõe a existência de um ordenamento da realidade: é isto que possibilita a própria identificação e descrição de leis da natureza; a filosofia questiona e investiga a origem destes padrões e a razão de sua existência.  Todas as ciências utilizam conceitos oriundos da filosofia.

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