Faculdade Mar Atlântico

Ética e virtudes: noções introdutórias

A palavra “ética” costuma evocar, de pronto, elementos de caráter legislativo — como os códigos de ética de diferentes profissões, de órgãos públicos e de empresas. A ética é, ainda, pensada em seu sentido retórico, como um conjunto de regras acerca do que não fazer. Curiosa é, também, a diferenciação por vezes feita entre ética e moral, como se a ética se tratasse de uma reflexão racional sobre o que convém ser feito, enquanto a moral estaria associada a um conjunto de costumes e regras obedecidos irrefletidamente. “Moral” e “ética”, todavia, são tão somente palavras de mesmo significado originadas em idiomas diferentes (latim e grego, respectivamente). Sem defini-las, ainda, pode-se dizer que filosofia moral e ética são expressões utilizadas para referir-se à mesma temática, isto é: a natureza da ação humana e suas consequências. 

Quando falamos das armadilhas nas discussões atuais sobre ética, podemos ainda falar daqueles que a concebem como um conjunto de leis positivas e extrínsecas. Trataria-se, segundo essa análise, de mero fruto adaptativo de convenções humanas; ou, então, assumiria um tom utilitarista, segundo o qual o que deve ser feito é o que tem um objetivo útil. Tais significações, contudo, são apenas uma pálida sombra do esplendor da disciplina da ética ou filosofia moral. 

O que parece ser uma ciência que tolhe a liberdade humana para observadores pouco ou mal instruídos é, na verdade, um conjunto de práticas que visam a busca do fim último do homem. Tal finalidade suprema é aquilo que o homem não é capaz de deixar de desejar: a felicidade. Mesmo o suicida busca pôr fim à vida por não encontrar nela a felicidade; não viver parece-lhe menos infeliz. O desejo de felicidade é inegável e a ética é, em última análise, a ciência da felicidade humana. 
Santo Agostinho, em seu Sermão 53, diz:

“Chega ao seu fim o alimento, chega ao seu fim a veste; o alimento chega ao fim porque foi comido; a veste é finalizada ao ser tecida; ambos chegam ao seu fim. Porém, um final significa a destruição e o outro significa estar completo”

Ao falar do fim último do homem no estudo da ética, fala-se do fim semelhante ao da veste: não é o homem que chegou ao fim e acabou; trata-se do ser humano que ficou pronto. O fim da veste é sua perfeição. Cada pessoa usa uma roupa diferente, mas cada roupa em si é perfeita, por já estar pronta. Pode-se atualizá-la, contudo em diferentes formas de tecitura. Do mesmo modo, o fim do ser humano é sempre o mesmo, mas se atualiza em cada homem segundo um caminho absolutamente particular. 

Podemos introduzir, a partir disso, a relação entre virtude e felicidade: as virtudes são as ferramentas utilizadas para tecer o homem até que atinja sua perfeição, isto é, até que alcance a felicidade. Uma é o meio, a outra é o fim; e a ética é a ciência prática do manejo de tais ferramentas. 

Vontade e liberdade

A vontade pode ser dita livre, mas com restrições: o homem não pode escolher como fim último outra coisa que não sua própria felicidade e o objeto próprio dela. Este é um desejo irrevogável. Em que sentido, então, a vontade é livre?

A liberdade de vontade que o homem possui diz respeito à escolha dos meios para atingir a felicidade. Tais meios, contudo, podem ser mais ou menos apropriados — o homem pode errar ao longo do caminho. A ética das virtudes, enquanto disciplina, visa adequar os meios ao fim que a vontade quer.

Virtude não é ataraxia — o lugar das paixões

As paixões denotam o elemento propriamente afetivo do ser humano, como seus desejos e sentimentos. Para um bom entendimento da ética, é importante saber a relação entre paixões e racionalidade humana.

A virtude não é razão fria em oposição aos afetos. Não é a ἀταραξία (Ataraxia) estoica, que constitui um estado de tranquilidade e ausência de afetação decorrente da ausência de paixões. A realidade humana possui uma dimensão afetiva e o cultivo das virtudes não visa rejeitá-la. Trata-se, em vez disso, de uma pedagogia dos afetos e da formação do desejo. O que se quer é educar as paixões em conformidade com a razão, de modo que o homem cultive bons sentimentos ao realizar atos virtuosos. 

Uma pessoa virtuosa não é somente uma pessoa que age de maneira correspondente ao que parece virtuoso, mas alguém que se sente bem agindo virtuosamente, ainda que isso lhe custe. É, portanto, a superação da cisão entre razão e sentimentos. 

No sujeito virtuoso, as paixões são sentidas de maneira razoável. Deve-se ressaltar que o ser humano possui uma alma intelectiva, que abarca as propriedades das almas vegetativa e sensitiva e vai além. É próprio do ser humano, portanto, o sentir e o pensar de forma não dicotômica — o sentir racional.

A noção de perfeição e a virtude

Como indicado pela analogia de Santo Agostinho, aperfeiçoar as potências da alma e paixões da alma humana nada mais é do que dar-lhes os elementos que as completam para que atinjam seus objetivos. A felicidade é o objetivo último de tal aperfeiçoamento. 

Há, ainda, outro conceito cuja significação em ética não corresponde à atribuição comum: o de hábito. Tal palavra não significa costume ou ações realizadas de forma automática; em antropologia e ética clássicas, trata-se de algo instalado em uma potência humana para modificá-la. É uma “segunda natureza instalada”. 

Quando um hábito é aderido a um ente de modo a conduzi-lo à perfeição, considera-se que é um hábito bom; se, ao contrário, é um hábito que desvia o ente de sua finalidade, é chamado de mau. Um mau hábito seria como um malware instalado em um computador para impedir seu bom uso. 

Mas de que se tratam as potências e paixões humanas, afinal? Pode-se dizer que são os acidentes próprios do homem. São os princípios das operações do ser humano que facilitarão o cumprimento da finalidade daquela potência ou paixão. Fala-se, portanto, dos hábitos operativos, que aderem a essas paixões e potências que possibilitam a operação do ser humano. 

Hábitos operativos bons farão com que aquela potência ou paixão adquira conaturalidade com o bem, isto é, a plena conformidade ao bem de forma natural. Em outras palavras, é como se a potência ou paixão adquirisse afinidade com o verdadeiro bem, que levará à felicidade. Os hábitos operativos bons são o que se chama de virtudes. 

Concluindo…

Em síntese, o estudo da ética revela-se muito mais do que o exame de um conjunto de regras impostas externamente ou um mero expediente utilitarista. É a ciência da felicidade humana, uma busca pela perfeição do ser humano em direção ao seu fim último. Através das virtudes, ferramentas essenciais nessa jornada, o homem busca tecer sua própria realização, alinhando suas paixões e potências com a razão e o bem supremo. A liberdade de vontade, nesse contexto, manifesta-se na escolha dos meios para alcançar a felicidade, enquanto a educação das paixões visa harmonizá-las com a racionalidade, gerando uma conexão intrínseca entre ação virtuosa e bem-estar interior. Assim, a ética mostra ser mais do que um guia para a conduta: é um caminho para a plenitude e a realização humana.
 

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